26/02/2007

LÍNGUA, REPERTÓRIO E CARNAVAL


Assistir às escolas de samba na TV sempre foi um grande prazer para mim, por isso tenho um vasto repertório de imagens e sambas-enredo conquistado em anos de leitura visual. Mas, mesmo assim, impressionou-me o samba da Mangueira, que teve como tema a Língua Portuguesa.

A preocupação do carnavalesco com o idioma, suas raízes e o problema da leitura no Brasil virou um colorido doido e balançante que proporcionou uma aula de poesia e intertextualidade. A letra da música apropriou-se de famosos discursos para compor uma mensagem de amor à língua e, através de intertextos, levou para a Sapucaí personalidades como Caetano Veloso, Fernando Pessoa, Olavo Bilac, Camões, Almeida Garret, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, num bailado ritmado e dialógico.

Mas, para sentir a emoção desse “encontro cultural” é imprescindível que esses discursos façam parte do repertório do leitor/observador. O repertório é o arquivo onde nosso conhecimento fica armazenado e é ele que define nossa postura face às informações que recebemos.

É claro que o buraco do repertório é mais embaixo. De nada adianta termos um arquivo com citações desconectadas e que não estabeleçam relações de significado entre si. O repertório funciona mais ou menos assim: se a informação não for refletida, transformada e adquirir traços pessoais, ela é eliminada para dar espaço para outras. Por isso, é comum esquecer o que se “decora” apenas para determinado evento (como o vestibular, por exemplo).

Para permanecerem no repertório, as informações devem se inter-relacionar. Por exemplo, a citação de Caetano Veloso presente no samba-enredo (“Minha pátria é minha língua”) retoma outra de Fernando Pessoa (“Minha pátria é a Língua Portuguesa”), porém lhe dá novos acentos. Para o português, sua pátria é a Língua Portuguesa porque nela se sente em casa; Caetano também fala essa língua, porém outra – enriquecida –, fruto da mestiçagem e de influências de espaço e tempo. Portanto, quando o brasileiro diz que sua pátria de é a SUA língua ele não está apenas repetindo o discurso alheio, está refletindo e ampliando sua dimensão significativa dentro do novo contexto.

A voz de Caetano não apaga a de Pessoa, ao contrário, é discurso sobre o discurso, ou seja, numa única voz há dois centros de fala. Por isso, a Mangueira, ao trazer a citação de Caetano, traz também a do poeta português e reflete sobre essa mistura que se realiza, inclusive, no seio da própria arte do carnaval: o encontro entre o rico e o pobre, o erudito e o popular, a voz do clássico e a voz do povo.

A Mangueira mostrou, visual e praticamente, o que nós, professores, tentamos a todo custo fazer entender: a necessidade da leitura como via de acesso à cultura. Quem não tem esse repertório cultural pode até desfrutar do espetáculo, mas o “ou/vê” pela metade como se no meio da apresentação caísse em sono profundo. Seu entendimento e apreensão da mensagem/espetáculo são cheios de lacunas interpretativas.

Essas idéias abstratas tornaram-se visuais na comissão de frente. Na coreografia idealizada por Carlinho de Jesus, os Camões faziam uma dança lingüística que ora formava uma palavra, ora outra, materializando o caráter mutável e moldável da língua. A palavra POESIA, por exemplo, foi exposta em movimento de vai-e-vem sugerindo o caminho que a trouxe até nós (o mar) e que a leva de novo ao seu ponto de partida, através de nossos artistas.

O clímax aconteceu com a transformação das personagens do escritor. em portuguesas dançando o “vira”. A dança, cujo nome vem do verbo “virar”, potencializa o movimento da língua, da fala, das vozes que ecoam outras vozes, enfim, do dinamismo e pluralidade da palavra.

Certamente, todos aplaudiram muito esse momento, mas somente quem conhece os famosos versos de Camões (“Transforma-se o amador na cousa amada / Por virtude do muito imaginar”) compreendeu a verdadeira intenção do ato. A Mangueira, como o grande poeta, realizou a união entre espírito e matéria, significante e significado, forma e conteúdo.
Por Senhora G.
Colunista Jornal Tribuna das Monções
www.portofeliz.com.br

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